terça-feira, 10 de setembro de 2019
Saem clubes, entram empresas: entenda o que pode mudar no futebol brasileiro ainda em 2019
Está em curso um processo que vai mudar para sempre o futebol brasileiro. Governo federal, Senado, Câmara dos Deputados, CBF, federações estaduais, clubes, todos os atores poderosos trabalham para, de alguma maneira, permitir que os clubes de futebol se transformem em empresas. No lugar da associação sem fins lucrativos, modelo adotado por quase todos no país hoje, entrariam as sociedades anônimas ou limitadas.
Há duas ressalvas importantes a fazer antes de continuar. A primeira é que a mudança pode se dar apenas para que tudo continue como está. A segunda é que os envolvidos na discussão não chegaram a um consenso sobre qual é o melhor caminho.
A única certeza, por enquanto, é que o governo não deve obrigar ninguém a mudar. Deve, sim, haver estímulos. A postura é diferente da época da Lei Pelé (1998), em que a legislação tentou forçar a transformação, mas acabou sendo alterada após uma série de insucessos. As semelhanças param por aqui. Hoje há pelo menos três grupos com propostas diferentes para promover a mudança.
O deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ) se tornou o principal expoente do projeto que nascerá na Câmara dos Deputados – com apoio do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Há expectativa de que seu projeto de lei, ainda a ser apresentado formalmente, seja votado na Câmara durante o mês de outubro.
No Senado, está em tramitação o Projeto de Lei do Senado 68/2017, que institui a Lei Geral do Esporte e regulamenta por tabela a criação de uma sociedade anônima específica para o esporte. Parado há dois anos, o projeto despertou interesse recente dos senadores e ex-atletas Romário (Podemos-RJ) e Leila (PSB-RJ) para que voltasse a avançar.
Ainda há o interesse do governo federal. O ministro da Economia, Paulo Guedes, escalou seu assessor especial Guilherme Afif Domingos para cuidar do tema. A pasta acompanha o desenrolar dos projetos que partem do Congresso, mas tem algumas ideias próprias – e divergentes – em relação aos demais.
O GloboEsporte.com teve acesso a detalhes de cada um dos projetos e elenca, abaixo, as principais características de cada proposta.
Ainda é incerto que tipo de consequência a mudança na legislação terá nos clubes. Há os que já se movimentam, como o Botafogo, os que estão preparados para a novidade, como o Athletico-PR, e os que não querem mudar – como Corinthians e Flamengo. O impacto da mudança nos clubes será explicado em outra reportagem, a publicar nesta semana.
Pedro Paulo, deputado federal — Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
O projeto da Câmara
O deputado federal Pedro Paulo possui um projeto chamado “Clube empresa”, formulado em setembro, que deverá ser apresentado para votação na Câmara entre 24 de setembro e 2 de outubro.
“O presidente Rodrigo Maia identificou isso como um tema prioritário, importante para o futebol brasileiro. Estamos fazendo um esforço concentrado para construir uma proposta de profissionalização dos clubes”, diz Pedro Paulo
O parlamentar entende que clubes não devem ser obrigados a se tornar empresas e defende que não deve existir uma sociedade anônima específica para o futebol ou para o esporte – como consta nas propostas formuladas pela equipe de Guilherme Afif Domingos e no Senado.
Pedro Paulo pretende estimular a migração de clubes para o modelo empresarial nas opções já existentes, como companhia limitada e sociedade anônima. Para que isso aconteça, o deputado quer oferecer uma série de benefícios.
Recuperação judicial
Hoje, empresas só podem entrar em estado de recuperação judicial caso tenham exercício regular em suas atividades por pelo menos dois anos. A ideia é que clubes de futebol possam entrar neste processo imediatamente após a migração para uma estrutura empresarial.
As regras formuladas pelo deputado permitiriam que um clube possa transferir todas as suas dívidas da associação para a empresa. A partir daí, as dívidas poderiam ser reestruturadas por meio do mecanismo da recuperação judicial, que já funciona para empresas convencionais.
Em resumo, clubes que entrarem em recuperação terão todos os bloqueios e penhoras suspensos por seis meses. Neste período, precisarão trabalhar em um Plano Global de Recuperação Judicial a ser submetido a credores como ex-funcionários e fornecedores.
Na prática, este mecanismo permite que haja um calote de grande parte da dívida, desde que os credores aceitem o plano proposto pela empresa. Entre não ter expectativa de receber o dinheiro que lhes é devido e recebê-lo dentro do prazo proposto pelo plano global, credores costumam perdoar entre 50% até mais de 90% dos valores devidos em recuperações judiciais. O restante poderia ser amortizado a prazo.
Novo refinanciamento de dívidas fiscais
Dívidas fiscais não poderão ser incluídas em processos de recuperação judicial. Neste caso, Pedro Paulo pretende aliviar as situações dos clubes com um percentual superior de reduções. Enquanto o Profut, em vigor, permitiu o abatimento de até 40% dos juros sobre as dívidas, a proposta aumentaria este percentual para 50%.
Em contrapartida, os clubes que aderirem a este refinanciamento por meio de suas empresas precisariam pagar antecipadamente cinco parcelas, equivalentes a 15% da dívida consolidada por meio do refinanciamento. As agremiações que optaram pelo Profut em 2015 não precisaram fazer um pagamento deste tipo após a entrada.
O deputado propõe um alongamento pelo mesmo prazo que o Profut, de 20 anos, para que os clubes consigam quitar impostos não pagos.
Fundo Garantidor para clubes quebrados
Pedro Paulo pretende criar um fundo que será abastecido por todos os clubes do país, com um percentual sobre o faturamento, cujo dinheiro poderá ser usado para resgatar clubes em “insolvência irreversível”.
Caso o mecanismo seja colocado em prática, todos os clubes da primeira divisão, por exemplo, precisariam dedicar um percentual mínimo de suas receitas para salvar aqueles que estão prestes a falir em escalões mais baixos – ou mesmo na primeira divisão.
“O presidente Rodrigo Maia quer uma proposta bem rápida. Até porque já tem muito conhecimento acumulado no tema. Vamos fazer uma grande audiência na Câmara, acreditamos que o presidente Bolsonaro vai apoiar o tema”, afirma Pedro Paulo ao GloboEsporte.com
Fim dos direitos trabalhistas para jogadores
O deputado federal propõe a “hiperssuficiência” de jogadores de futebol em relação aos seus direitos trabalhistas.
Hiperssuficiência, neste caso, significa que o jogador poderá assinar um contrato com o clube em questão sem que tenha direitos trabalhistas garantidos por ele. Ele se submeteria a uma relação cível e receberia apenas direitos de imagem, por exemplo.
Pedro Paulo pretende restringir esta situação a atletas com salários superiores a R$ 10 mil mensais, hoje equivalentes a cerca de 2,5% sobre todos os profissionais registrados pela CBF. Aqueles jogadores abaixo desta quantia continuariam a ter direitos trabalhistas obrigatórios.
Esta seria uma mudança em relação a algo que a reforma trabalhista mexeu recentemente. Depois dela, passou a ser permitido que profissionais de quaisquer setores possam abdicar do vínculo trabalhista caso cumpram dois requisitos: diploma universitário e remuneração superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – hoje limitado em R$ 11.600 mensais. Pedro Paulo quer eliminar a necessidade de diploma para o futebol.
Equiparação da tributação entre associações e empresas
Hoje, não há nada que impeça um clube de futebol de deixar o modelo de associação e entrar no de empresa – limitada ou sociedade anônima. Mas há um motivo contrário. Há impostos que são parcial ou totalmente isentos para associações que são cobrados de companhias.
Para estimular a migração para a estrutura empresarial, Pedro Paulo pretende aplicar todos esses impostos sobre associações sem fins lucrativos. A nota de corte seria um faturamento de R$ 5 milhões anuais. Todas as associações acima disso seriam tributadas, independentemente de se tornarem empresas limitadas ou S/As.
Duplicação do mecanismo de solidariedade
No projeto do deputado federal, clubes passariam a destinar até 10% de transferências nacionais para os respectivos formadores. O percentual aumenta conforme o número de anos em que o atleta passou pelas categorias de base do formador. Hoje, o limite é de 5%.
Romário, senador — Foto: Jane de Araújo/Agência Senado
O projeto do Senado
O Projeto de Lei do Senado 68/2017 não foi criado especificamente para a Sociedade Anônima Esportiva (SAE) – e sim voltado para instituir a Lei Geral do Desporto, mais abrangente. Mas o surgimento desta estrutura societária foi incluído entre os seus artigos.
A SAE é muito semelhante ao que projeto de lei que havia sido proposto por Otávio Leite, deputado federal entre 2014 e 2018, que propunha a Sociedade Anônima do Futebol (SAF). A diferença é que a adaptação proposta pelo Senado expande as regras para qualquer agremiação.
O texto deste projeto não versa sobre benefícios específicos aos clubes que se tornarem empresas, como perdão de dívidas ou a entrada facilitada em uma recuperação judicial. Em vez disso, a SAE apenas põe regras estruturais para que associações façam a migração para ela.
Direitos de ações classe A
O projeto prevê, por exemplo, a possibilidade de um acionista ter poder de veto em determinadas situações desde que mantenha pelo menos 10% de ações “classe A”.
Hipoteticamente, uma associação com 10% das ações sobre a sociedade anônima esportiva teria poder para vetar mudanças de cidades, escudos, símbolos, cores, além de medidas drásticas como pedido de falência ou recuperação judicial, mesmo que outros acionistas tenham 90% das ações desta classe. Isso para resguardar a tradição neste formato.
Veto a acionista com mais de uma SAE
Para evitar que Flamengo e Vasco tenham o mesmo dono, por exemplo, o projeto prevê a proibição da participação de um mesmo acionista sobre o capital social de duas SAEs. A medida é pensada para evitar conflitos de interesses e manipulação de resultados.
Administração profissional
A SAE deve ser administrada por um Conselho de Administração (uma espécie de Conselho Deliberativo, em alusão à estrutura da associação sem fins lucrativos) e uma Diretoria. O primeiro órgão tem o dever de nomear diretores e acompanhar seus objetivos e trabalhos.
O projeto prevê algumas obrigações, como a comunicação anual da relação completa de seus administradores, a dedicação exclusiva dos administradores à gestão da SAE, bem como a obrigação de pelo menos metade do Conselho de Administração independente enquanto a associação esportiva, tradicional, for a única acionista das ações da S/A.
Paulo Guedes, ministro da Economia — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O projeto do Executivo
O projeto tem sido preparado por uma equipe liderada pelo empresário Guilherme Afif Domingos, assessor especial do Ministério da Economia, encabeçado pelo ministro Paulo Guedes. De acordo com o próprio Afif, o projeto deverá se chamar “Choque de bola”.
“No futebol, nós exportamos matéria-prima e importamos produto de alto valor agregado. É como no café: nós exportamos grãos e importamos máquinas e cápsulas”, diz Afif
É o que mais se assemelha ao projeto de lei que havia sido proposto pelo então deputado Otávio Leite (PSDB-RJ) em 2016. O projeto não avançou, e o parlamentar não foi reeleito.
Em síntese, este grupo pretende criar uma estrutura societária alternativa para clubes de futebol, cujo nome provisório é Sociedade Anônima do Futebol (SAF). O movimento seria similar ao adotado por países como Portugal, que criou a Sociedade Anônima Desportiva (SAD) para que clubes fossem estimulados a se tornar empresas.
Assim como no caso da SAE, a SAF não tem como propósito o benefício das empresas em processos de recuperação judicial ou perdão de dívidas. A intenção, no caso, é criar uma estrutura societária própria para clubes de futebol, que resguarde particularidades deste mercado que não estão presentes em outras regulamentações.
“Fui envolvido nisso porque o Paulo Guedes me pediu. O futebol é um grande mercado, há bilhões de reais que estamos deixando escapar”, afirma Guilherme Afif Domingos
As características presentes na SAE também estão entre as premissas da SAF, motivo pelo qual os itens não serão repetidos. Outra diferença, este sim um benefício para quem aderir à estrutura, é a criação de um prazo de transição para o pagamento de impostos.
Prazo de transição para pagamento de impostos
Atualmente, associações sem fins lucrativos possuem isenções sobre uma série de impostos da qual empresas estão obrigadas a pagar. Entre eles estão o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Para estimular a adoção da estrutura societária de empresa futebolística, a SAF teria um prazo de transição em que os clubes teriam tempo para adequar seus negócios aos impostos. Em vez de pagar 100% dos tributos previstos logo no primeiro ano, haveria um prazo de dez anos em que o percentual subiria gradualmente, ano após ano, até chegar ao máximo.
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