Descendente de argelinos e muçulmano praticante, atacante tem relação complicada com o país onde nasceu. Ele está suspenso da seleção por chantagem a Valbuena
Foi assim que Karim Mostafa Benzema, num lampejo de eloquência para alguém tão introvertido, resumiu sua relação com a França. O atacante mais talentoso do país está suspenso da seleção e corre o risco de ficar fora da Eurocopa de 2016, por causa de seu comportamento errático fora das quatro linhas. E, apesar da qualidade técnica, há quem respire aliviado pela ausência dele, especialmente políticos. A questão vai além do futebol: Benzema, um descendente de argelinos crescido na periferia de Lyon, é o símbolo de como a França, atordoada por ataques terroristas em 2015, ainda não sabe lidar com a significativa parcela de imigrantes e seus descendentes – muitos deles muçulmanos – que redesenha a cultura do país.
Benzema nunca foi um queridinho na França. Muçulmano praticante, é introvertido, evita ao máximo dar entrevistas e cultiva até hoje amizade com aqueles que cresceram ao seu lado em Bron, um bairro pobre de Lyon. Muitos deles são apontados como má influência na vida do atacante do Real Madrid. Mas há quem diga que o artilheiro, por si só, não estava preparado para a fama.
- Ele sempre foi um pouco prepotente. Tinha essa característica de que o dinheiro poderia mexer com ele. Não era nocivo ao grupo, respeitava os mais velhos, mas zoava a molecada quando erravam. É debochado, um cara que pensa primeiro nele – contou um ex-companheiro de Benzema no Lyon.
Benzema com a camisa da França: relação complicada com o país de origem (Foto: Getty Images)
Começo arrasador no Lyon
Benzema é um dos sete filhos de Hafid, nascido em Tighzert, na Argélia, e Wahida Djebbara, criada em Lyon, mas também de origem argelina. O atacante cresceu em Bron, um bairro pobre com população majoritariamente árabe, onde sua família mora até hoje. Ainda criança, foi descoberto pelo Lyon e iniciou trajetória que culminou na chegada à equipe profissional ainda com 17 anos.
Casa da Família Benzema em Bron, periferia de Lyon (Foto: Claudia Garcia)
Rapidamente, o garoto se destacou. Primeiro, pela atitude. A tradição no vencedor elenco do Lyon era que cada menino que fosse promovido fizesse um discurso aos jogadores na primeira vez em que fosse relacionado. Karim encarou o desafio. Assumiu posição e espantou os veteranos:
Início de carreira no Lyon: 43 gols e sete títulos conquistados em cinco anos (Foto: Getty Images)
- Estou muito feliz por estar aqui, mas vim para jogar – avisou, de forma rápida e direta.
A princípio, Benzema atuava pelos lados, enquanto Fred, hoje no Fluminense, era o centroavante. Conforme ganhou protagonismo, pediu para atuar no comando do ataque – logo depois o brasileiro voltaria ao país de origem. Forte, veloz e com muita qualidade técnica, o francês marcou 43 gols em 112 partidas ao longo de cinco temporadas e acumulou sete troféus: quatro Campeonatos Franceses, duas Copas da França e duas Supercopas da França.
Em 2009, Benzema foi vendido ao Real Madrid por 35 milhões de euros. No clube espanhol, virou coadjuvante, mas fontes ligadas ao vestiário merengue garantem que sua relação é boa com os companheiros.
Porém, a partir da ida para a Espanha, cada vez mais famoso, Benzema passou a se envolver em polêmicas fora de campo. Foi diversas vezes flagrado ultrapassando o limite de velocidade em estradas espanholas; em 2010, foi acusado de se envolver com uma prostituta menor de idade, junto com Ribéry, Ben Arfa e Govou, companheiros de seleção.
A mais recente polêmica de Benzema, porém, custou ainda mais caro. O atacante chegou a ser detido pela polícia francesa, acusado de chantagear Mathieu Valbuena, outro jogador da seleção francesa. Nas escutas divulgadas pela imprensa, Benzema aparece conversando com um intermediário, relatando a conversa que teve com Valbuena, tentando convencê-lo a pagar um valor para que um suposto vídeo de sexo com uma prostituta não seja divulgado.
Benzema e Valbuena em treino da seleção francesa durante a Copa de 2014 (Foto: REUTERS/Charles Platiau)
Francês ou árabe?
A investigação fez com que Benzema fosse suspenso da seleção francesa até que o caso seja encerrado. O atacante deve ficar fora da Eurocopa de 2016, mas pode ser que, no fundo, não faça muita questão de defender os Bleus. Entre os jogadores que atuaram com ele, a impressão é de que o atacante sempre mostrou desapego e mágoa com o povo francês.
Uma das formas de demonstrar isso é o fato de não cantar a Marselhesa. Avesso a entrevistas, Benzema nunca explicou o motivo para ficar calado enquanto soa o hino nacional francês. Sua postura sempre incomodou o país, mas há um adendo: Zidane, outro craque de origem argelina, também não cantava o hino, e sempre foi adorado pela França.
- Existe alguma implicância (com Benzema) neste aspecto. Ninguém sabe direito por que ele não canta o hino: ou não sabe bem a letra, ou faz para provocar ou não liga para isso. Mas não acho que seja porque ele não se sente francês – ponderou Anne-Laure Bonnet, jornalista da rádio “beIn Sports”.
- As pessoas queriam que ele cantasse o hino. O Front Nacional (partido de extrema direita), por exemplo. Mas no mundo do futebol, não é um problema não cantar o hino. Os imigrantes não têm uma posição fácil, mas os franceses gostam muito de Zidane e de outros imigrantes – contemporizou Régis Dupont, repórter do jornal “L’Equipe”.
Benzema se cala durante execução do hino da França: postura causa polêmica (Foto: Getty Images)
A diferença de tratamento entre Zidane e Benzema tem uma explicação. Zizou, apesar de descendente de argelinos, sempre se comportou como francês. Karim é o contrário: é muçulmano, não bebe álcool, observa obedientemente o Ramadã. Diz-se na França que só se casou com sua esposa, Chloé, quando ela se converteu ao islamismo.
- O meu filho é muçulmano. Nós somos muçulmanos praticantes. Mas ele é francês. Minha esposa não usa chador, a minha filha usa. São coisas que elas sentem de coração. O Karim se sente francês de coração, ele nasceu aqui, cresceu aqui, estudou nesse país que ele ama. Muitas pessoas não sabem, mas ele foi convidado para representar a Argélia, poderia estar lá jogando com eles, mas preferiu a França. Ele escolheu esta camisa. Cantar ou não cantar o hino não tem nada a ver com o fato de ele se sentir francês de coração – defendeu Hafid, seu pai, em entrevista ao GloboEsporte.com em 2014.
Bronca de franceses é o rendimento fraco de Benzema na seleção em comparação ao Real Madrid (Foto: Reuters)
Além de não cantar o hino, Benzema causou ainda mais fúria em políticos franceses num gesto dúbio no último clássico entre Real Madrid e Barcelona. Antes do jogo, realizado poucos dias depois do atentado terrorista em Paris, a Marselhesa tocou no estádio, e o atacante foi visto cuspindo no chão após a execução. Para alguns, uma maneira de menosprezar o hino. A deputada Nadine Morano pediu que o jogador fosse excluído da seleção.
Em campo, também há explicação para a implicância com Benzema. O atacante nunca correspondeu de pleno às expectativas. Apesar da boa Copa do Mundo que fez em 2014, o sentimento é de que ele poderia fazer mais pelos Bleus. Ao todo, são 21 gols em 87 jogos, mas longos períodos de jejum que geram questionamentos – a frase que abre esta reportagem está dentro deste contexto e foi dada em 2011 à revista “So Foot”, quando ele passava por um período menos prolífico.
- Ele não joga tão bem na seleção quanto no Real Madrid. Seu problema é que não faz gols. Só marca contra equipes pequenas. Não é o jogador dominador da França como era Zidane. O problema dele são os amigos. Há muitos amigos de infância ao lado dele que são traficantes – analisou Dupont.
Benzema posa com carro (Foto: Reprodução)
Como Adriano
Tentar entender Benzema passa necessariamente por sua relação com os amigos de infância. Todos que falam sobre o jogador citam as amizades para explicar a personalidade do atacante. Até o presidente da Federação Francesa de Futebol, Noel Le Graët, fez referência às “más companhias” ao anunciar a suspensão do artilheiro.
- Karim tem más companhias, isso está claro, mas ele próprio não está implicado em nada. Ele é sempre criticado, não gostam dele por causa de seu comportamento, mas, para mim, é um jogador do mais alto nível – defendeu Le Graët.
Benzema é detido na França por caso de chantagem contra Valbuena (Foto: AFP)
Para a jornalista Anne-Laure Bonnet, a relação de Benzema com o lugar em que foi criado se assemelha com a de Adriano, o Imperador, cria da Vila Cruzeiro, que nunca abriu mão de visitar velhos amigos.
- O Benzema é assim. Ele cresceu em Bron e não deixa os seus amigos de Bron. É um pouco como acontece com o Adriano e seus amigos na favela – comparou.
Outra preocupação diz respeito à condição física de Benzema. O atacante é considerado profissional por quem atuou com ele, mas é visto, na atualidade, mais "pesado" do que no início da carreira.
Relação ruim com a imprensa
Benzema concede entrevista ao canal "TF1", da França: cena rara (Foto: Reprodução / TF1)
O enigma em que se transformou Benzema é ainda mais complicado de desvendar por causa da relação do jogador com a imprensa. O francês é extremamente avesso a entrevistas: no Real Madrid, é sempre um dos primeiros a deixar o vestiário e dificilmente para na zona mista. Em seus país natal, não faz questão de aparecer nem quando está bem.
- Nos últimos anos, ele tem feito muitas coisas boas no Real Madrid, mas, como ele quase não fala com a imprensa, ninguém dá muito valor ao que ele tem conseguido. Ele não liga para isso. Não é ídolo na França, não trabalha a imagem dele. Por isso, sempre viveu muito afastado do grande público francês. Quando está bem, não aparece para reforçar a imagem positiva dele. Agora, as pessoas só veem o lado negativo – contou Bonnet.
Talvez ciente desta necessidade, Benzema foi à televisão francesa na última semana para se manifestar sobre o caso Valbuena. Disse que esperava voltar a jogar com Valbuena na seleção para poder conquistar a Eurocopa e defendeu um amigo de infância, Karim Zenait, acusado de ser um dos chantagistas.
- Não conheço os chantagistas. Karim Zenati é um amigo de infância. Ele já esteve na prisão, mas é uma boa pessoa e merece uma nova chance.
O problema é que a resposta de Benzema veio tarde demais – e não convenceu. Hoje, para os franceses, Benzema é árabe: não tem espaço nos Bleus.
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