Em Brasília, atacante tenta se livrar de multa de R$ 189 milhões; acusação vê omissão de valores não declarados à Receita e simulação de contratos com Barcelona
O processo administrativo que levou a Receita Federal a multar o atacante Neymar em R$ 188,8 milhões – valor que, com os juros, já ultrapassa R$ 200 milhões – tem cerca de 15 mil páginas. São cinco as infrações apontadas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para tentar manter a autuação e barrar recurso do jogador, que será julgado a partir das 9h desta quarta-feira no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), em Brasília.
O Fisco entende que Neymar omitiu cerca de R$ 65 milhões de suas declarações de imposto de renda. São valores pagos através de contratos de exploração de direito de imagem e da transferência do atacante para o Barcelona que, para a Receita, deveriam ter sido tributados como pessoa física sob alíquota de 27,5%, e não como pessoa jurídica, cuja tributação é de 15%.
Após classificação épica na Liga dos Campeões, Neymar tem agora decisão fora do campo (Foto: Andreu Dalmau / EFE)
Entenda as acusações contra o atleta:
1. Aquisição de direitos de imagem pelo Santos
Em 2006, aos 14 anos, Neymar cedeu gratuitamente sua imagem à Neymar Sport, empresa criada pelo pai do jogador, Neymar da Silva Santos, para gerir a carreira do atacante. Em seguida, o Santos pagou R$ 1,7 milhão para adquirir a imagem do jovem que atuava na base alvinegra.
A procuradoria indica problemas na data dos contratos: a cessão da imagem de Neymar à empresa do pai é de 11 de maio de 2006. Já o acordo entre Santos e Neymar Sport é de 10 de maio de 2006. Conforme o GloboEsporte.com revelou em 2016, o primeiro documento ainda qualifica Neymar como "jogador profissional" e "maior de idade". Ele, na verdade, era atleta em formação e havia completado 14 anos recentemente.
À época da publicação, o advogado de Neymar Gustavo Xisto minimizou o que ele classificou como "erro material".
– Tal qual um erro de grafia no nome, estado civil, etc., o que não invalida a substância do negócio jurídico – disse.
Para a procuradoria, é um indício de que o documento foi confeccionado em data diferente da que consta no papel.
Logo após Neymar se tornar um astro e despertar o interesse de clubes europeus, o Santos devolveu parte dos direitos de imagem do jogador à Neymar Sport num acerto para elevar os ganhos do jogador e mantê-lo no Brasil por mais tempo – a porcentagem começou em 70% em 2010 e passou a 90% em 2011.
A acusação afirma que a empresa não tinha estrutura para gerenciar os contratos de imagem de Neymar. Além disso, aponta que as atividades eram efetivamente exercidas por funcionários que constavam na folha de pagamento do Santos, mas que se dedicavam apenas ao atacante.
2. Pagamentos mensais feitos pelo Santos a título de direitos de imagem
O acordo entre Neymar Sports e Santos previa o pagamento de parcelas mensais e fixas à empresa que, para a procuradoria, tinham caráter de remuneração salarial. Para sustentar a tesa, a Fazenda aponta que os valores eram habituais, que existia subordinação ao clube e que as despesas do Santos com o pagamento pelo uso da imagem de Neymar superava as receitas pela exploração deste ativo.
Além disso, cita trecho do contrato de trabalho entre Neymar e Santos, de 21 de dezembro de 2011, que trata da remuneração do jogador:
– Foi igualmente ajustado entre as partes que o atleta também teria aumento de salário em agosto de 2011, mas, na prática, a alteração do contrato de trabalho só se deu em 01 de dezembro de 2011. O atleta, neste ano, renuncia ao aumento dos salários e direito decorrentes no refiro período. Como compensação, as partes ajustam remuneração adicional à imagem do atleta, no valor de R$ 200.000 (duzentos mil reais), que o Santos pagará à Neymar Sports contra a emissão de respectiva nota fiscal – diz o trecho. Aos conselheiros do Carf, a procuradoria grifou a última sentença e destacou as palavras "compensação" e "remuneração adicional à imagem do atleta".
3. Direito de preferência pago pelo Barcelona
A transferência de Neymar ao Barcelona, concretizada em 2013, forma a maior parte da autuação da Receita Federal. A N&N Consultoria, outra companhia fundada pelos pais do atacante, assinou contratos de 40 milhões de euros com o clube em 2011 para garantir a contratação do jogador.
São dois acordos distintos: o primeiro, de novembro de 2011, determinava a transferência de Neymar ao Barcelona a partir do momento em que ele se tornasse agente livre – à época, ele tinha vínculo com o Santos até julho de 2014. Se o acordo fosse cumprido, a N&N receberia os 40 milhões de euros. Por outro lado, o responsável por um possível descumprimento do contrato pagaria o mesmo valor à outra parte.
Um mês depois, N&N e Barcelona acerta um segundo acordo, vinculado ao primeiro, de 10 milhões de euros. No papel, consta o título de "empréstimo". Para a procuradoria, era, na verdade, um adiantamento.
O contrato não previa a cobrança de juros ou mesmo a devolução do valor. Um empréstimo não é tributado por não ser um rendimento, ao contrário do que aconteceria a um adiantamento.
Em janeiro, o GloboEsporte.com publicou parte dos depoimentos do ex-presidente do Barcelona Sandro Rosell e do atual, Jose Maria Bartomeu, à Justiça da Espanha. Neles, ambos afirmam que os 10 milhões de euros eram um "sinal".
O pagamento pode indicar o descumprimento do regulamento de transferências da Fifa, que proíbe a assinatura de pré-contratos entre clubes e atletas antes dos seis últimos meses de vínculo do jogador com sua equipe atual.
Barcelona e Neymar argumentam que tinham autorização para fechar o acordo graças a uma carta assinada pelo ex-presidente do Santos Luis Alvaro de Oliveira Ribeiro que permitia ao pai do jogador negociar a transferência futura do filho.
A carta é do dia 8 de novembro de 2011, enquanto o primeiro contrato entre a N&N e o Barcelona é de 15 de novembro. Para a Procuradoria, um período de tempo muito curto para a costura e assinatura de um negócio de tamanha complexidade.
A Justiça da Espanha, que também analisa a relação, entende que Neymar e Barcelona burlaram as regras da Fifa. O Santos acionou ambos na câmara de arbitragem da federação internacional, onde cobra uma indenização de cerca de 65 milhões de euros.
Por fim, em sua acusação, a Fazenda cita a contratação de um seguro, pago pelo Barcelona, antes de concretização da transferência para sustentar a tese de que foi pago um adiantamento. Nele, o clube espanhol se resguardava para recuperar o investimento já feito (10 milhões de euros) caso o jogador sofresse um acidente que o tornasse incapaz de prosseguir com sua carreira.
4. Contratação de empresa do pai de Neymar para serviço de scouting
Empresa do pai de Neymar (à esq.) também é alvo de acusações (Foto: Reuters)
Quase dois meses após Neymar assinar contrato de trabalho com o Barcelona, a N&N acertou novo acordo com o Barcelona para observar jovens jogadores no Brasil, entre eles os três santistas (Gabriel, Giva e Victor Andrade) que tiveram a preferência adquirida do Santos por 7,9 milhões.
Pelo serviço, a N&N receberia 2 milhões de euros em cinco parcelas anuais de 400 mil euros. Para a Fazenda, contrato simulado para esconder valores pelo contrato de trabalho de Neymar. A acusação aponta que não há prova da efetiva prestação do trabalho, além de desconhecimento do Santos sobre a observação de atletas do clube.
5. Pagamentos mensais feitos pelo Barcelona a título de direitos de imagem
Assim como no caso do Santos, a Procuradoria entende que o Barcelona fez pagamentos irregulares à N&N Administração, uma terceira empresa criada pelos pais de Neymar, como direitos de imagem.
Os valores eram habituais e fixos, além de serem vinculados ao contrato de trabalho entre o jogador e o Barcelona. O objeto social da empresa também não tinha relação com a gestão de imagem.
Voto da relatora
A sessão desta quarta-feira será a terceira do julgamento – a previsão é de que seja a última. A relatora do caso, Bianca Felicia Rothschild, votou pela nulidade do processo por entender que o Fisco extrapolou sua competência, mas foi derrotada em plenário.
Ao analisar o mérito, Rothschild afirmou que não há irregularidades nos pagamentos feitos pelo Santos às empresas de Neymar. Ela votou pela manutenção de multa pelos repasses feitos pelo Barcelona, mas não viu má-fé nos acordos, o que diminui a autuação de 150% do valor omitido para 75%. Nessa quarta, outros seis conselheiros votarão.
Defesa
Em novembro do ano passado, o ex-tenista Gustavo Kuerten foi condenado pelo Carf a pagar R$ 7 milhões por receber pagamentos através de empresas que gerenciam sua imagem.
O caso é semelhante ao de Neymar, que ainda jovem cedeu sua imagem às empresas cujos sócios são seus pais. São essas companhias que gerenciam contratos e recebem por eles. Foi à N&N Consultoria que o Barcelona pagou 40 milhões de euros pela transferência do atacante.
Os pagamentos feitos a pessoas jurídicas têm tributação mais baixa, de 15%. A Receita Federal, entretanto, entende que todos esses rendimentos têm natureza salarial e, portanto, deveriam ser declarados no Imposto de Renda de Pessoa Física, com tributação de 27,5%.
O advogado Marcos Neder, que defende Neymar, aponta uma diferença que ele julga ajudar o jogador: a promulgação de uma lei de 2005 que regula a prestação de serviços intelectuais – a cobrança a Guga é anterior a esta legislação.
– Nesses casos de exploração de imagem, o tributo é na pessoa jurídica, exceto casos de fraude. A lei é favorável (ao Neymar) – defendeu o advogado em entrevista ao GloboEsporte.com em janeiro.
– Além disso, o Neymar não é sócio da empresa. Nos outros casos (como o de Guga), misturavam pessoa jurídica e física. Por fim, o Neymar tem uma atividade clara de direito de imagem. Em 2013 ele já tinha 100 de contratos de imagem no mundo todo – completou Neder.
Neymar já foi condenado em outra ação, de valor bem mais baixo. O Fisco multou o atleta e seu pai em R$ 460 mil por omissão de valores recebidos quando ele ainda era um jogador da base do Santos. Em agosto do ano passado, Neymar desistiu de recorrer e pagou a sanção.
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